Marcas: alguns bichos de sete cabeças fazem sentido
O mundo de hoje é um lugar em que se luta a favor dos direitos da comunidade LGBTQ+, da igualdade de raça e género, do feminismo, da preservação do meio ambiente, da ética e sustentabilidade das empresas, entre outros temas

Num daqueles famosos grupos de marketing no WhatsApp, onde se juntam profissionais da indústria, foi partilhado um anúncio: Um homem jovem, bem-parecido, sai do duche e senta-se na cama de boxers agarrado ao telemóvel. A voz-off vai nos contando os seus pensamentos e ele faz o seu scroll matinal. “Bem, vamos lá ver o que encontro hoje. Hummm, tão booom. Hum, 40? Está bem conservada… mas prefiro mais novas. Beeem, que belas prateleiras! TUDO no sítio. Marcamos encontro às 18?” O encontro era com um agente imobiliário do Idealista. Com esta pequena síntese poderão imaginar o seguimento da conversa.
Alguns profissionais mostraram desagrado dizendo que não acreditam como ‘ainda se faz disto’, e que ‘brincar às marcas pode sair muito caro’. Outros passaram um pano por cima de um tema que deve ser discutido, dizendo que ‘o politicamente correto vai matar a nossa indústria’. Segue-se dizendo que o anúncio era apenas uma má utilização de ironia comparando uma casa a alguém que conhecemos no Tinder, “que by the way, é uma das apps mais instaladas em Portugal…ups moralistas”. Imaginem a minha surpresa quando me apercebo de que alguém, seguramente mais maduro e experiente do que eu, possa pensar que esse era o problema: uma ironia infeliz e uma referência a uma app de encontros. Aparentemente fazer uma crítica a este tipo de conteúdo e utilizar o Tinder são ações incompatíveis.
VEJA TAMBÉM: A ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO MARKETING
Na minha humilde opinião, a marca, nesta peça de comunicação, demonstra uma enorme falta de sensibilidade para detectar o tipo de mundo e momento em que vivemos. Simples.
Eu faço parte de uma geração maravilhosa, mas que se ofende com tudo. Uma palavra fora do contexto é um bicho de sete cabeças. Uma expressão menos feliz é um 31.
Enfim, sabem do que falo. Como se todos fossemos sempre moralmente corretos. Eu inclusive sim, porque aqui e ali farei o mesmo. E claro que por vezes é um exagero.
Justifica-se que os ‘não-ofendidos’ se perguntem como é que vivemos num mundo tão livre, mas tão crítico? Mas aqui entra o discernimento das marcas, que tem que ser sempre maior e melhor do que o de um indivíduo por si só.
Novo posicionamento das marcas
O mundo de hoje é um lugar em que se luta a favor dos direitos da comunidade LGBTQ+, da igualdade de raça e género, do feminismo, da preservação do meio ambiente, da ética e sustentabilidade das empresas, entre outros temas.
Todas as marcas vivem debaixo de um microscópio e os consumidores são perspicazes. Têm garra e plataformas suficientes para criticar e arrasar com as marcas que não se enquadram. E enquadrarem-se pode apenas significar que estarão a tentar acompanhar a evolução natural das coisas, os valores do consumidor que sustentam o negócio. Ou estarão, efetivamente, a ser corretas, porque algo foram aprendendo com o tempo e têm boas intenções, ou estarão a ser inteligentes e perspicazes, e a ter em conta que as marcas que vão sobreviver são as que se adaptam ao agora. E isto não é ser politicamente correto.
Nenhuma marca deve sê-lo, porque isso é detetado e não é apreciado. Aí concordo plenamente com o +351 91x xxx xxx que fez o comentário acima referido. E todas as marcas devem, na minha opinião, arriscar. Eu sou pro-riscos, pro-boldness, pro-sair-fora- da-caixa! Mas o risco tem que se adaptar inteligentemente aos dias que correm, para compensar e obter resultados positivos. Se não há uma planner por aí que escreve um artigo a falar mal da marca…
Regressando ao tema inicial: o anúncio do Idealista. Este não foi bold. Não foi bem conseguido. Não se enquadrou no agora. E não digo isto porque é ofensivo, porque isso é uma opinião subjetiva. E tão pouco digo isto porque existiu referência a uma app de encontros. Go Tinder!
A razão pelo qual o anúncio é mau, objetivamente, é porque não tem em conta o mundo em que vivemos. Incentiva a masculinidade tóxica, transmitindo a ideia de que um homem é mais ‘cool’ e desejável se falar assim de uma mulher, levando-nos ao tema da objetificação da mesma. Se esta ‘brincadeira’ tivesse sido feita de outra maneira, com outro tom, outra linguagem, a coisa era muito diferente. E no entanto, nesse caso, ninguém teria entendido a ironia, não é verdade?
Resumindo, com boa ou má utilização de ironia, e com ou sem a referência ao Tinder, o conteúdo é mau porque brinca com temas que sensibilizam muita gente no momento atual, e incentiva um tipo de comportamento que se quer combater. Esse foi o real problema.
Para terminar deixo uma nota pessoal, que vale o que vale. Eu entendo que muitos foram educados para crer que não tem problema falar de uma mulher da maneira a que se faz referência aqui. Que possa sair naturalmente e sem maldade. Que por mais que digamos que não está correto, em muitos cenários, é algo que continuará a acontecer. Arrisco-me a dizer que nalguns destes cenários é uma atitude ‘desculpável’, mas na grande maioria não é, especialmente associado a uma marca! Não é por uma razão muito simples.
Nenhum homem a ler isto se sentiria bem com outro homem a falar da mãe, irmã, mulher ou filha dessa forma. Evoluímos diariamente em tanto. Vamos lá evoluir nisto também.
Por Matilde Silva Gomes,
Planner da LOLA NORMAJEAN