Sabores perdidos: estarão as marcas a devorar a cultura alimentar?
Como assim omelete já pronta e às fatias? Devem ter visto nas últimas semanas a inovação lançada pela indústria alimentar.
Sou super a favor da inovação nas marcas – sou mesmo! Mas, dá que pensar. O básico da sobrevivência não era saber fazer uma omelete, um ovo estrelado ou um tacho de arroz?
Estaremos a transformar os consumidores em seres preguiçosos? – ah, e não venham com a desculpa da falta de tempo. A dita omelete demora 5 minutos a preparar, já a contar com bater os ovos. Agora fiquei a pensar se saberão os consumidores o que são ovos (“de galinha criada ao ar livre”) ou se já só os conhecem na forma de “claras líquidas pasteurizadas” em frascos que se vendem nos hipermercados na zona dos desportistas? Fica a dúvida.
A ideia, percebo, é dar soluções diversificadas de proteína aos consumidores, fáceis de consumir, saborosas (o mais semelhante ao feito na hora) e de elevado valor nutricional. Até aqui tudo bem, mas, estaremos a entrar no cúmulo da simplificação? Estarão as marcas a contribuir para que se perca parte da nossa cultura alimentar?
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Claro que é possível que a inovação das marcas de produtos alimentares e das refeições prontas a consumir possa ter algum impacto nas tradições culinárias – se levarmos ao extremo a inovação e a aceitação desse tipo de produto. Não foi assim há tanto tempo que o homem cultivava a terra e produzia os seus próprios alimentos locais e onde a comida era reflexo de uma cultura única de uma comunidade.
Claro que, de tempos a tempos são introduzidos novos ingredientes, técnicas culinárias e desenvolvidas novas tradições, mas, no geral, cada região do mundo tinha (creio que ainda tem, apesar de tudo) uma cultura alimentar tão única quanto a língua que falavam.
Na verdade, cada um de nós gosta de celebrar e orgulha-se das receitas e tradições locais – uma Francesinha à Moda do Porto, umas Migas Alentejanas, uma Feijoada de Sames de Bacalhau – e, por essa razão sempre que cozinhamos para “estrangeiros” empenhamo-nos em cozinhar na perfeição o prato típico do nosso país ou região, certo?
Apesar de ser possível introduzir novos ingredientes, rever formas de cozinhar e adaptar a um ou outro detalhe de uma outra cultura, é quase impossível mudar a dieta geral de uma sociedade num nível mais profundo – ou pelo menos esta era a perceção até há bem pouco tempo.
O problema?
A cultura alimentar começou a mudar a uma escala global – muito mais rapidamente do que nunca – e já não é verdade que “a dieta de um homem seja mais difícil de mudar do que a sua religião” (Margaret Mead, antropóloga cultural norte-americana).
Nos “dias modernos”, em que os consumidores dependem cada vez mais de alimentos de conveniência, pré-embalados e prontos a comer, podem sentir-se menos inclinados a aprender métodos de cozinha tradicionais e receitas passadas de geração em geração e, isso pode levar a uma perda de conhecimentos e competências culinárias culturais no futuro.
Além disso, a proliferação da comida rápida e dos alimentos transformados pode contribuir para uma diminuição do gosto por ingredientes frescos de origem local e pelas técnicas de cozinha tradicionais. Como resultado, certas tradições culinárias podem tornar-se menos praticadas ou esquecidas ao longo do tempo.
Não estou a tentar – de todo – dizer que a inovação na indústria alimentar é negativa (não tivesse sido essa a base da minha formação). Muitas marcas de produtos alimentares esforçam-se por criar produtos que sejam convenientes sem sacrificar a qualidade ou a autenticidade. Além disso, algumas inovações podem efetivamente ajudar a preservar as tradições culinárias, tornando os alimentos tradicionais mais acessíveis a um público mais vasto. Mas … há um grande risco de, pelo caminho, sacrificarmos algumas das tradições culturais acabando mesmo por perdê-las (por questões comerciais, de hábitos de vida ou apenas por desconhecimento).
As correntes de novos planos alimentares a que temos assistido, muitas vezes promovidas por marcas e por ações de marketing poderosas, podem alterar de forma drástica e rápida a cultura alimentar de uma determinada sociedade – a introdução de alimentos, que não faziam parte da alimentação de base num país, acabam por alterar os padrões alimentares através de mensagens das marcas com a ideia de alimentos de “luxo” (muitas vezes o elixir da eterna juventude e saúde como é o caso dos “super alimentos” de que se ouve falar agora).
É esta velocidade com que ocorrem as mudanças na cultura alimentar que é problemática. Em alguns países está a acontecer tão rapidamente que, no espaço de uma geração se destruiu por completo o património alimentar dessa cultura e, a verdade é que esse património conta muito sobre essa sociedade em particular.
A perda deste conhecimento alimentar cultural – o que comer, como cultivar, como preparar ou conservar os alimentos – leva à perda direta de biodiversidade, à perda de parte da história e das tradições.
Posso estar a ser meio dramática. Na verdade, estamos a falar apenas de omelete às fatias, mas fiquei a refletir sobre o real impacto destas inovações na sociedade em geral e na nossa em particular. Estou a pensar seriamente mandar os meus filhos para casa dos avós para aprenderem a cozinhar tudo o que eles sabem fazer: alheiras, cabrito assado em forno de lenha, marmelada, rojões, bola transmontana e sei lá mais o quê. Pode ser que aprendam e que se preserve alguma coisa por aqui. Do meu lado, acho que os vou ensinar a estrelar um ovo, fazer uma omelete e a fazer um tacho de arroz. Pode ser-lhes útil no futuro. Quiçá!?
Mas e as marcas? E a inovação das marcas da indústria alimentar?
As marcas, devem tirar o máximo partido das tendências culturais e utilizá-las para se manterem relevantes e estabelecerem ligações profundas com os consumidores. Podem fazê-lo estruturando a sua estratégia de inovação com foco em:
- Melhorar a sua imagem através da relevância cultural
- Impulsionar a inovação de novos produtos utilizando como fonte de inspiração os conhecimentos culturais
- Incorporar as tendências culturais nas campanhas de marketing
Em última análise, é fundamental encontrar um equilíbrio entre conveniência e tradição. Incentivar as pessoas a cozinhar em casa, ensinar competências culinárias e promover o gosto por diversas cozinhas. Poderemos conseguir mitigar os potenciais efeitos negativos da inovação alimentar nas tradições culinárias e, as marcas podem, também elas, promover este conhecimento das tradições e património cultural alimentar.
É só mais um caminho de inovação, quer na comunicação quer no desenvolvimento de novos produtos.
Não vou negar à partida um produto que desconheço. Quem sabe ainda dou uma oportunidade à omelete às fatias 😊. Vos direi.