Ricardo Pereira e Silva: «Os tratamentos para a incontinência urinária apresentam uma excelente eficácia»
A incontinência urinária continua a ser um tema tabu que afeta 400 milhões de pessoas no mundo, que muitas vezes não procuram tratamento por vergonha. Sem tratamento, pode levar à perturbação da autoestima e ao isolamento social. A propósito do Dia Mundial da Incontinência Urinária, que se assinala a 14 de março, Ricardo Pereira e Silva, urologista no Hospital de Santa Maria, desmistifica alguns mitos e apresenta as soluções que existem para o problema.
Segundo a Associação Portuguesa de Urologia, a incontinência urinária afeta 20% da população portuguesa com mais de 40 anos. Como se explicam estes números para uma patologia que se pode tratar?
Infelizmente, a incontinência urinária ainda é um tema difícil para muitas pessoas, que preferem ocultar o problema ao invés de o transmitirem aos médicos para que possam ser diagnosticadas e tratadas. A incidência é de facto muito elevada, mas os tratamentos disponíveis apresentam globalmente uma excelente eficácia, portanto devemos envidar todos os esforços no sentido de oferecer uma resolução eficaz e atempada.
Destas, 33% das mulheres e 16% dos homens. Porquê esta diferença substancial entre homens e mulheres?
Quando olhamos para os números globais, a incontinência urinária afeta predominantemente mulheres devido à sua anatomia (uretra mais curta, com mecanismo de continência menos eficaz) e também devido à frequente presença de fatores de risco obstétricos. Os partos por via vaginal, principalmente complicados, são um dos principais fatores de risco responsáveis por esta assimetria.
A taxa de cura da incontinência de esforço é de 90%. Porém, apenas 10% dos doentes recorrem ao médico para resolver problemas de incontinência. Os restantes recorrem à automedicação ou à autoproteção. A incontinência urinária continua a ser tabu?
A incontinência urinária tem graves consequências para a vida das pessoas afetadas. É muitas vezes difícil falar sobre o assunto porque, frequentemente, a pessoa afetada tem vergonha, por receio do estigma inerente a este sintoma – acaba por ser algo associado à falta de higiene e ao envelhecimento (apesar de afetar também pessoas jovens). Quando as pessoas optam por ocultar o problema acabam por ver a sua situação agravar-se ao longo dos anos. O consumo de pensos ou fraldas aumenta, com o respetivo peso do ponto de vista económico e de autoimagem. O tratamento mais tardio conduz, igualmente, a piores resultados. Portanto, sim, para muitas pessoas a incontinência urinária ainda é um tabu, mas é nosso dever ajudar a combater isso mesmo.
«Os custos diretos e indiretos relacionados com o tratamento dos doentes são um problema crescente»
Os profissionais de saúde não estarão também suficientemente sensibilizados para a importância e frequência desta doença?
Sem dúvida que o trabalho a fazer no que diz respeito à consciencialização das pessoas não se deve limitar ao público em geral, mas deve também abranger os profissionais de saúde. Pode haver uma tendência para desvalorização do problema em detrimento de outras condições clínicas, como por exemplo, as doenças oncológicas. A questão é que numa era em que se advoga o envelhecimento ativo e a qualidade de vida é tida como fundamental, é essencial que se pergunte aos doentes acerca deste sintoma e se dê espaço para que o doente possa mencionar as suas queixas e ser esclarecido em relação à sua situação.
Quais as principais causas e fatores de risco para a incontinência urinária?
A incontinência urinária tem como principais fatores de risco, na mulher, os antecedentes obstétricos – partos vaginais, principalmente instrumentados com forceps ou ventosa, com laceração do pavimento pélvico ou de fetos de elevado peso à nascença, principalmente se forem múltiplos. Algumas doenças neurológicas podem também estar na génese da incontinência urinária (por exemplo algumas demências ou a esclerose múltipla). Adicionalmente, alguns fatores podem contribuir para o surgimento ou agravamento, como a obesidade e o tabagismo.
Que impacto a incontinência urinária tem no dia a dia de quem dela padece?
O impacto é muito grande e faz-se notar nas mais diversas valências da vida do doente. A perturbação da autoimagem e da autoestima pode conduzir ao isolamento social e a dificuldades no relacionamento íntimo. Pode prejudicar ou mesmo impossibilitar alguns tipos de atividade profissional, pela necessidade de ir à casa-de-banho com demasiada frequência ou pelo receio do odor a urina. Adicionalmente, os meios de contenção de urina utilizados (pensos e fraldas) representam custos muitas vezes avultados. A incontinência urinária é uma situação que pode ferir gravemente a dignidade das pessoas afetadas e, sem dúvida, condicionar gravemente as suas vidas e condicionar as suas atividades no geral.
Com o envelhecimento da população, que impacto esta condição não sendo tratada pode ter no país?
Por um lado, os custos diretos e indiretos relacionados com o tratamento dos doentes são um problema crescente. Por outro lado, a evicção do contacto social contribui fortemente para quadros de ansiedade e depressão nas pessoas afetadas, constituindo um grande entrave ao envelhecimento ativo ao contribuir para uma forte restrição da atividade. Naturalmente que, tendo em conta que a incidência aumenta com a idade, o envelhecimento global da população vai contribuir para um aumento do número de doentes com incontinência e da magnitude do problema a nível global.
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Existem diferentes tipos de incontinência. Pode explicar as diferenças?
A incontinência pode ser essencialmente de dois tipos: de esforço ou de urgência (também chamada por imperiosidade). O primeiro consiste nas perdas que ocorrem com a tosse, espirro ou esforços físicos no geral e é bastante mais frequente em mulheres pelas razões já listadas; nos homens a incontinência urinária de esforço é mais frequentemente consequência de cirurgias pélvicas, nomeadamente por doença oncológica. A incontinência urinária de urgência é a que surge associada à bexiga hiperativa – as pessoas afetadas reportam episódios de vontade súbita e urgente de urinar (urgência miccional), não conseguindo chegar a tempo à casa-de-banho e ocorrendo perda nesse contexto. Neste caso a incidência é semelhante em ambos os sexos. Frequentemente coexistem os dois tipos e a incontinência é classificada como mista.
Falemos agora de tratamento. É possível curar a incontinência urinária? Quais os tratamentos que existem e que taxas de sucesso têm?
Algumas medidas gerais podem contribuir para uma melhoria da incontinência, nomeadamente a perda de peso, a cessação tabágica (deixar de fumar) ou a evicção de algumas bebidas irritativas para a bexiga (como chá, café, bebidas alcoólicas ou gaseificadas), principalmente nos doentes que sofrem de bexiga hiperativa. A reabilitação do pavimento pélvico (fisioterapia pélvica) pode igualmente reduzir as perdas em doentes com incontinência por ambos os mecanismos.
Os restantes tratamentos diferem de acordo com o tipo de incontinência. Nas doentes do sexo feminino com incontinência urinária de esforço o tratamento é essencialmente cirúrgico, existindo técnicas cirúrgicas com baixo tempo operatório, elevada eficácia e baixa taxa de complicações.
A incontinência urinária de urgência (no contexto de bexiga hiperativa) é tratada em primeira linha com medicamentos que apresentam uma eficácia razoável – quando estes não permitem um adequado alívio dos sintomas, tratamentos como injeção de Botox a nível da bexiga ou neuromodulação de raízes sagradas (semelhante a um pacemaker a nível pélvico) poderão estar indicados.
A pandemia também teve impacto no agravamento deste tipo de condição na população portuguesa?
Como noutras valências da vida, a pandemia teve um enorme impacto também a este nível. Por um lado, o confinamento pode permitir que muitas pessoas tenham um acesso mais fácil à casa-de-banho permitindo evitar as perdas ou resolver as suas consequências (mudar de penso, mudar de roupa, tomar duche a meio do dia). Por outro lado, a diminuição da atividade física e o ganho de peso eventual que daí pode resultar, bem como situações de stress psicológico decorrentes da situação pandémica, podem contribuir para um agravamento. Na minha opinião, as consequências efetivas vão fazer-se notar mais tarde – quando as pessoas com disfunção do aparelho urinário inferior voltarem às suas mais variadas atividades presenciais (frequentar casas de familiares ou amigos, concertos, locais de trabalho com acesso difícil à casa-de-banho), poderão constatar novamente sintomatologia grave à qual já não estão habituadas e a sua readaptação poderá ser mais difícil. Antevendo isso, nota-se já uma procura maior de ajuda médica para ajudar a resolver o problema em doentes que receiam não estar em condições de retomar as suas atividades devido à incontinência não tratada.