O perigo da gratidão forçada
“Tens de estar grata. Há pessoas a passar pior que tu. Devias agradecer pelo que tens”. Como reagir a quem diz algo assim? Como nos podemos sentir gratos sem nos sentirmos mal ou divididos?

Frases como as que dei como exemplo no início deste texto têm um efeito tóxico. Alimentam sentimentos de insuficiência, de falta de merecimento, de inferioridade, de divisão interior, ou outros. Sentir e expressar gratidão em nada apaga as dificuldades que sentimos. Pode sim diminuir o peso emocional destas, relativizar e contextualizar a experiência vivida.
Não é um caso de “preto e branco”, de “sim ou não”, de “presente ou ausente”. Estar grato, assim como reconhecer os privilégios que se tem, é coexistente com as dificuldades e desafios que se sente.
Eu sou um dos privilegiados. Tenho comida, saúde, cama onde me deitar, casa onde me abrigar. Tenho carro, telemóvel, computador, internet, televisão, frigorífico, entre outros. Tenho água potável na torneira, gás para aquecer o duche, eletricidade, recolha do lixo que produzo, e mais. Vivo num país seguro (mesmo já tendo sido roubado), sem guerra ou ameaças e perigos como existem noutros. Tenho amigos, família, pessoas que acompanham o que faço, que confiam em mim e me pedem apoio para lidar com situações e alcançar objetivos que têm.
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Como homem caucasiano, com pele branca, educação universitária e formações internacionais sou especialmente privilegiado. Tenho mais probabilidades que muitas outras pessoas neste mundo.
Nada disso apaga as dificuldades que passei e as que passo. Apenas as torna mais fáceis quando comparando, p.ex., com uma mulher com outra cor de pele e uma cultura que (ainda) a desmerece, menospreza, e/ou impede de fazer certas coisas.
Se devia estar grato? Não sei. Se quero estar grato? Sim. Se estou consciente (a maior parte do tempo, pelo menos) de privilégios e coisas na minha vida pelas quais posso estar grato? Sim. Se o faço todos os dias? Não.
Pelo que observo, a pessoa que se força a estar grata está em luta interior. E desgastada. A gratidão não é nenhuma “brincadeira” de jogar “às escondidas”. Em que esconderíamos as coisas com nos sentimos desconfortáveis, desagradados, frustrados, zangados, ou o que for.
Estar grato é reconhecer e agradecer a presença do que valorizamos, do que nos ajuda, do que existe na nossa vida. Por vezes, mesmo que ainda não consigamos ver o valor e benefício.
Como reagir a quem diga que devia estar grat@?
Como fizer sentido no contexto e conforme a intenção que tenha. Pode: ficar em silêncio; sorrir; ficar com expressão neutra; perguntar qual a intenção da pessoa para dizer aquilo; perguntar se a outra pessoa está sempre grata; dizer obrigado pelas palavras dela; perguntar-lhe como é que ela faz para estar grata quando se sente mal (ou como você se sentir); entre muitas outras formas. Incluindo fazer uma pausa na comunicação, ou mesmo na relação, com aquela pessoa.
Como pode sentir-se grat@ sem se sentir mal ou dividid@?
Sugiro que assuma a coexistência das coisas de que não gosta, da situação com que se está a sentir mal, do desentendimento com alguém, ao mesmo tempo que se lembra de coisas pelas quais está grat@ na sua vida. Se necessário, siga a prática de se lembrar (e até escrever) 5 coisas que agradece ter/sentir/saber agora.
Sugiro também que (quase) nunca elimine ou desconsidere os sentimentos com que está desconfortável e que dificultem o sentir-se grat@ plenamente. Pelo contrário, reconheça-os. Dê-lhes atenção saudável. Se não sabe como, pergunte. Se não consegue ou não quer fazer esse processo sozinh@, peça ajuda.
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