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Maria Manuel Leitão Marques: «Precisamos de continuar a lutar pelos direitos das mulheres se não queremos esperar 60 anos pela igualdade plena»

Na União Europeia, só cinco países são liderados por mulheres. Nas maiores empresas do espaço europeu, só 8% dos CEO são mulheres. A acrescentar, 7 milhões de mulheres estão excluídas do mercado de trabalho, em comparação com apenas 450 mil homens, por desenvolverem trabalho não remunerado de prestação de cuidados. Estes são alguns dados que mostram o panorama que perpetua a desigualdade de género, mesmo na Europa. Maria Manuel Leitão Marques é eurodeputada e tem assento na FEMM - Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade de Género, o que lhe dá uma visão ampla sobre a condição das mulheres em Portugal e no plano europeu. Hoje, Dia Internacional da Mulher, fala-nos dos grandes desafios que ainda existem e porque não se pode baixar os braços.

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Em 2021, continuamos a assinalar o Dia da Mulher? Atingir a igualdade de género ainda está longe?

Apesar dos progressos que têm sido feitos nos últimos anos, a igualdade de género ainda continua longe. Segundo dados do Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), a União Europeia (UE) precisa de 60 anos para a atingir em todas as áreas da vida. Reparem, passaram já 25 anos da Declaração de Pequim, mas dos 189 países que a assinaram e assumiram compromissos importantes de combate pela igualdade de género até hoje nenhum os cumpriu na totalidade.

Para além da estatística, há ainda outras desigualdades mais sub-reptícias, menos visíveis, nos comportamentos públicos e privados que derivam de uma cultura machista que foi tantos séculos dominante. Portanto, precisamos de continuar a lutar pelos direitos das mulheres no dia 8 de março e nos restantes dias do ano, se não queremos esperar mais 60 anos para termos uma igualdade plena.

 

Como eurodeputada com assento na FEMM – Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade de Género, tem uma visão ampla sobre a condição da mulher na Europa. Quais são para si as grandes lutas a serem travadas?

Tendo de destacar uma, escolheria o desequilíbrio na prestação de cuidados dentro e fora de casa, aos mais novos e aos mais velhos, e a conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal, que com esta pandemia ficou particularmente exposta.

Na Europa, por exemplo, 7 milhões de mulheres continuam excluídas do mercado de trabalho, em comparação com apenas 450 000 homens, por causa do trabalho não remunerado de prestação de cuidados. E, por semana, as mulheres continuam a passar, em média, mais 13 horas do que os homens no trabalho doméstico e em deveres de cuidado. Se não começarmos a trabalhar na educação dos jovens mostrando que os deveres e as carreiras de cuidado não são exclusivamente femininos nunca conseguiremos interverter esta tendência.

 

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Estamos inseridos na União Europeia, com leis que no papel ressaltam a igualdade de todos os seres humanos. E na prática? Na sua perspetiva, há situações onde as mulheres continuam a ser subvalorizadas em relação aos homens?

Li recentemente uma entrevista de Hillary Clinton, a propósito dos 25 anos da Declaração de Pequim, em que afirmava que não basta consagrar direitos. É preciso que as mulheres tenham poder para lutar por eles e, portanto, ocupem posições de direção no setor público e no privado.  As mulheres são metade da população mundial. Só quando se sentarem em todas as mesas em que se tomam decisões e competirem nesses lugares em situação de igualdade poderemos acreditar que os seus direitos vão ganhar vida para além das leis, e entranhar-se no quotidiano.

Para já, ainda não é isso que acontece. Na UE, só 5 países têm mulheres líderes, e nas maiores empresas da UE, só 8% dos CEO são mulheres.

Uma das causas pela qual me bati enquanto fui ministra com responsabilidades na área da igualdade foi pelas quotas de género na política, e nas empresas públicas e privadas. Ouvi argumentos contra que já não esperava ouvir como o de que não há mulheres disponíveis! Mas o resultado está à vista. No caso das empresas cotadas em bolsa a percentagem de mulheres nos conselhos de administração subiu 10%, desde a entrada em vigor da lei em 2017.

No Parlamento Europeu, luto agora para que todas as mulheres da UE, e não apenas as portuguesas, beneficiem de legislação que force a sua participação no conselho de administração de empresas, a chamada Directiva Women on Boards. Esta diretiva está bloqueada há vários anos no Conselho, e a Presidência Portuguesa comprometeu-se a desenvolver todos os esforços para a aprovar.

 

No caso de Portugal, quais são os principais problemas que destaca no universo dos direitos das mulheres?

Os problemas dos direitos das mulheres em Portugal não são muito diferentes dos do resto da UE. Referindo os principais, continuamos a precisar de uma maior participação das mulheres na tomada de decisões; de apostar nas competências digitais; de encontrar formas de promover um maior equilíbrio entre a vida pessoal, familiar e profissional, sobretudo em tempos de teletrabalho; de combater a praga da violência contra as mulheres, física e online; de eliminar a desigualdade salarial que mesmo na UE é de 16%; de começar na escola a educar; e de ser sempre intolerantes com uma cultura machista que por vezes se revela em pequenos gestos, referências e comentários no espaço público e privado.

 

A violência doméstica é uma situação gritante em Portugal e sempre uma das mais ressaltadas. Comparativamente com outros países europeus, como estamos e porque se justifica a situação que se vive no país?

Pensa-se que a pandemia da COVID-19, sobretudo os períodos de confinamento obrigatório, agravou as situações de violência doméstica por toda a UE e pelo mundo. As mulheres foram forçadas a permanecer em casa por períodos de tempo prolongados tendo, por isso, ficado mais expostas aos seus agressores. Estando sempre em casa, tornou-se também mais difícil recorrer a instituições ou linhas de apoio com o agressor por perto, o que justifica que, em muitos países, o número de denúncias tenha diminuído. O aumento do uso da Internet e das redes sociais, decorrente dos mesmos confinamentos e de medidas de distanciamento social impostas, principalmente entre os jovens, também tem sido associado ao aumento de casos de ciberviolência contra as mulheres. Sem dúvida que a solução, em Portugal e no resto da UE, tem de continuar a passar por apostar em mais educação para a cidadania e num maior investimento em estruturas adequadas e seguras de apoio às vítimas. A confiança em quem se queixa é crucial, bem a como a proteção da vítima a seguir a ela. Temos ainda de ser criativos nos meios, por exemplo, desenvolvendo apps que permitam reportar os abusos de forma discreta e eficiente.

 

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Estamos a falar de fragilidade de direitos que podem facilmente ser violados. A Polónia, por exemplo, está a regredir neste campo, nomeadamente ao endurecer a lei do aborto que restringe a interrupção voluntária da gravidez em caso malformação do feto. Há um perigo de contágio a outros países?

Simone de Beauvoir dizia que basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam postos em causa. Situações como a que se vive na Polonia mostram-nos que nunca podemos baixar os braços, porque não há direitos adquiridos em lado nenhum da UE e do mundo.

 

Na UE, seis países ainda não aderiram à Convenção de Istambul, o tratado europeu de combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica. Hungria, Letónia, Lituânia, Eslováquia, República Checa e Bulgária não aderiram, e a Polónia, que a ratificou em 2015, ameaça abandonar a Convenção. Que implicações isto pode ter para as mulheres desses países e para as restantes europeias?

33% das mulheres na UE já foram vítimas de violência física e/ou sexual. A violência contra as mulheres é um crime, por isso todos os Estados-Membros têm o dever de ratificar a Convenção de Istambul. Não podemos viver numa UE em que há mulheres mais protegidas e outras menos, consoante o país em que nasceram ou residem. Os direitos têm de chegar até todas as mulheres.

Na Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025 da UE, uma das prioridades é concluir a adesão da UE à Convenção de Istambul. Se porventura a adesão da UE à Convenção continuar bloqueada por alguns dos Estados-Membros, a Comissão tenciona apresentar uma iniciativa para alargar os chamados «eurocrimes» a formas específicas de violência de género.

Penso que aqui, uma vez mais, será importante o papel da Presidência Portuguesa do Conselho, que vai promover, no próximo mês de abril, uma conferência para assinalar e fazer um balanço dos 10 anos da Convenção de Istambul.

 

A pandemia veio agravar a situação, com a ONU Mulheres a declarar a violência doméstica como uma ‘pandemia paralela’ que aumentou bastante com o confinamento. De que ponto se parte agora nesta luta? O que é necessário fazer para travar esta ‘pandemia paralela’?

Como já referi, a violência que atinge tantas vezes, e ainda a forma mais grave da perda de vida, é uma praga que já não devia existir no século XXI. Conquistámos outros direitos, mas ainda não vencemos esta batalha. Infelizmente para ela não há vacina. É uma luta contra uma cultura de exercício de poder contra as mulheres através de violência física e verbal e contra uma cultura de resignação. É uma batalha em várias frentes, da prevenção ao remédio; da escola, na educação de meninas e meninos, à polícia, no auxílio às vítimas; do espaço ao público ao privado (incluindo as ajudas informais de amigas que às vezes se apercebem mais cedo do apoio necessário). O espaço da intimidade é sem dúvida o mais difícil de atingir. Ele é por vezes invisível a quem está de fora.  Para além daquele ditado, entre marido e mulher não metas a colher, que tantas vezes deve ter ajudado a esconder o que deve ser revelado.

 

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A Presidência Portuguesa do Conselho da EU vai organizar neste semestre uma conferência de alto nível sobre violência contra as mulheres na União Europeia. O que se espera que saia desta reunião?

O objetivo da Conferência é assinalar e fazer um balanço dos 10 anos da Convenção de Istambul, incluindo a análise de avanços e retrocessos, dos desafios colocados pela pandemia da COVID-19, e ainda procurar encontrar respostas a novas formas de violência contra as mulheres.

Pessoalmente, gostaria que este também fosse um espaço onde a Presidência Portuguesa facilitasse o diálogo entre os Estados-Membros que ainda não aderiram a Convenção de Istambul para que esta discussão voltasse a ser uma prioridade na agenda europeia.

 

Relativamente à FEMM, quais têm sido as principais conquistas e no que estão a trabalhar agora?

A Comissão FEMM tem tido um papel muito ativo na vida parlamentar. Destacaria três relatórios que foram apresentados no passado mês de janeiro: um sobre o impacto da pandemia da COVID-19 na vida das mulheres, outro em que o Parlamento reflete sobre a Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025 apresentada pela Comissão Europeia, e finalmente outro sobre a participação das mulheres na economia digital.

Neste último relatório, em que trabalhei em nome do grupo político dos Socialistas & Democratas, tive a oportunidade de refletir sobre a escassa presença de mulheres nas carreiras tecnológicas e as medidas a tomar para inverter essa realidade. Segundo o Eurostat, em 2018, as mulheres são apenas 17% dos 1,3 milhões de pessoas que estudam tecnologias da informação e da comunicação (TIC) na União Europeia. O fosso salarial entre homens e mulheres é maior nesta área do que nas restantes, 19 % contra 16%. E é também na área das TIC que se regista a maior percentagem de conselhos de administração exclusivamente masculinos.

Concluímos que é preciso colmatar o fosso digital entre homens e mulheres, a começar na escola e, ulteriormente, na formação ao longo da vida. Temos de mostrar a meninas e raparigas que a tecnologia não é uma coisa de geeks. A tecnologia não só é o setor onde estão os empregos do futuro, mas também é o campo ideal para quem quer ter impacto na vida das pessoas e no desenho do seu futuro. Em suma, temos de desenvolver iniciativas para atrair raparigas para carreiras nas áreas TIC bem como para atrair os homens para as profissões de cuidado.

 

Por fim, neste Dia Internacional da Mulher, que palavra quer deixar a quem ler esta entrevista?

Sou uma otimista, por isso gostaria de deixar uma palavra: esperança. Espero que num futuro próximo, no dia 8 de março, venhamos para a rua não para lutar pela igualdade, mas para festejar tudo o que foi alcançado. Para que isso aconteça, é preciso que cada uma de nós sinta que tem poder nas suas mãos para se fazer ouvir, em casa, na sua rua ou freguesia, na sua cidade, junto do governo, da Assembleia da República e da União Europeia. Com um coro forte e afinado, o som da nossa voz chegará mais longe, e mais depressa eliminaremos esta desigualdade. Reparem, já foi longo o caminho percorrido, vamos em frente no que falta!

 

 

 

 

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