Geração camaleão: afinal também somos lutadores
Sempre vivi com a ideia de que pertencia a uma geração privilegiada. Nasci em liberdade, em 1975, nunca me faltou nada, andei à escola, na universidade, saí muito com amigos, fiz algumas viagens, comecei a trabalhar… Sempre tive esta ideia em comparação com as gerações precedentes, em que se viveu debaixo de uma ditadura, num Portugal profundamente iletrado, a braços com uma Guerra Colonial, pobre e sem liberdade. Durante muito tempo achei que não tínhamos grandes lutas para travar. Os nossos antecessores deixaram-nos um mundo relativamente confortável. E, de facto, assim foi durante muitos anos.

Depois… bem, afinal, temos sido também uns lutadores. Não da forma tradicional de lutar contra um inimigo objetivado, como numa das múltiplas guerras travadas no século XX, mas contra vários inimigos, de diferentes formas. Porque as guerras, afinal, não se fazem só contra outros países ou ideologias.
Vimos crescer a globalização e com ela as viagens e a descoberta de inúmeros recantos do mundo. Novos produtos, novas culturas, um novo comércio se globalizou como nunca antes a uma velocidade que só os transportes e as tecnologias dos séculos XX e XXI permitiram. O mundo tornou-se a famosa Aldeia Global e tivemos acesso a muitas coisas pela primeira vez.
Mas com estras trocas alargadas vimos também disseminar-se o confronto de culturas, de ideologias. Os teatros de guerra tornaram-se mais dinâmicos. Neste sentido, o 11 de Setembro foi o nosso primeiro e grande choque de realidade. A partir daquele dia o mundo onde crescemos nunca mais foi o mesmo. E foi aí que tivemos pela primeira vez, qual camaleão, de nos adaptar. O mundo deixou de ser um lugar seguro, pelo menos aquele onde mais no movimentávamos, porque as lutas começaram a travar-se também à nossa porta com o lançamento de uma qualquer bomba em Paris ou Londres. Tivemos de nos adaptar e começar a andar com um olho por cima do ombro. Instalou-se a insegurança.
A estabilidade – esse bem que nos dá uma falsa segurança, mas que tanta nos conforta – também se foi. Empregos para a vida como os nossos pais tiveram? Não existem. Ou existem para uma minoria. E lá temos nós de travar lutas com a instabilidade e levar a vida mais no presente e sem pensar muito no futuro, com todas as consequências que isso traz para a vida de cada um. Não esquecendo que nunca as gerações estiveram tão bem preparadas como estas últimas, mas os lugares de trabalho não são garantidos e nem bem pagos. Isso levou a uma enorme vaga de emigração de jovens muito bem preparados. E assim lutamos contra a instabilidade.
Como se não bastasse, um flagelo caiu-nos em cima nos últimos anos, deixando-nos todos aterrados de medo. O cancro, essa doença que assola todos os lares e cujas estatísticas sentenciam uma em cada três pessoas ao longo da sua vida. Muitas vezes é uma sentença de morte, outras não, mas deixa sempre uma espada em cima da cabeça de quem dela padece. O aumento da doença deve-se ao estilo de vida ocidental que se alterou desde as décadas de 1950/60, quando os eletrodomésticos se disseminaram, a alimentação se tornou mais processada e produzida em massa, os carros começaram a circular em grande escala e o sedentarismo se instalou, não esquecendo o tabaco, a poluição a aumentar, etc, etc. Dizem os entendidos que o estilo de vida moderno tem boa parte da culpa. E agora? Temos de lutar contra o medo do cancro. O medo de sofrer e morrer cedo ou ver isso acontecer aos nossos.
Este estilo de vida desenfreado levado a cabo durante décadas por todo o mundo colocou uma pressão sem precedentes no planeta Terra. Carne barata na mesa, fruta tropical, iguarias do Oriente, carros para o pai, mãe e filhos, roupas novas a cada estação, muitos brinquedos no Natal… É demasiada pressão produtiva para um planeta finito. E hoje vivemos as consequenciais das alterações climáticas que vieram desregular o equilibro da natureza. E temos esta grande lutar para travar: voltar a pôr o planeta nos eixos. Mas como, se todo o nosso estilo de vida é contrário à boa saúde ambiental? Temos de encontrar soluções.
Agora, mais recentemente, surgiu-nos um inimigo invisível, o novo coronavírus. Uma doença global, a Covid-19, que em poucas semanas atingiu todo o mundo. E estamos todos a lutar contra esta nova ameaça, uns na frente de batalha, outros isolando-se em casa, fazendo autênticos shutdown de países em massa. Algo só comparado à Gripe Espanhola de 1918-20 mas num mundo globalizado e com consequências imprevisíveis para a sociedade. É claro que vamos sobreviver a mais esta batalha, mas devíamos reflectir sobre a forma como a sociedade está organizada. Dependermos de produtos que são feitos no outro lado do mundo? Talvez não seja boa ideia. Acho que o Global está a ficar out e o Local ‘is the new black‘, fazendo uma analogia com o mundo da moda. Mas que o mundo terá de mudar alguma coisa depois desta pandemia global, ai isso terá. Ou estaremos expostos a um qualquer inimigo invisível que atravesse o mundo no tempo de uma viagem de avião.
No meio disto tudo temos de nos manter unidos, a tentar manter sociedades equilibradas e democratas. Mas também isto não é um dado adquirido, como se possa pensar. A democracia é um processo em constante conquista, com ameaças a espreitarem de diversas formas. Populismo diz-lhe alguma coisa? Dizer aquilo que o povo quer ouvir e instigá-lo, normalmente, contra poderes instalados, apelando à emoção em vez de à razão; à reposta imediata em vez de à resposta analítica. Fácil junto de uma sociedade que consome conteúdos em modo swipe e está a habituar-se a reagir de forma instintiva. Bom, e uma nova recessão económica também não ajuda.
…isto cansa. São muitas guerras, complexas, sem rosto e em diversas frentes. E nós temos constantemente de nos reinventar e adaptar. Mas já endurecemos a carapaça. Portanto, vamos dar luta.