Enxaqueca na mulher: um tormento da saúde feminina?
A enxaqueca é uma doença que afeta predominantemente as mulheres. De facto, estima-se que, a nível mundial, cerca de 18% das mulheres sofram de enxaqueca, comparativamente a 9% dos homens.

A idade de início da enxaqueca é um pouco variável mas, de um modo geral, tende a surgir, de forma mais regular, no início da vida adulta. A sua prevalência (ou seja a percentagem de pessoas afetadas) tende a aumentar com a idade atingindo-se o pico da prevalência pelos 40 anos de idade. É entre os 35 e os 45 anos que o maior número de pessoas é afetado, sobretudo as mulheres. Depois dos 40 anos a prevalência começa a diminuir e há uma tendência para melhorar ou desaparecer pelos 60 anos, após a menopausa no caso específico das mulheres.
Naturalmente nem todas as mulheres são afetadas da mesma forma e existem variações individuais, na intensidade, na frequência e na duração das crises e também diferenças de padrão relacionadas com a idade. Sabe-se por exemplo que na infância as crises de enxaqueca são mais curtas e com mais vómitos, enquanto que nas pessoas mais seniores as crises são mais longas e consistem sobretudo em dor, com poucos sintomas acompanhantes.
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Para muitas mulheres considerado um “martírio” – que impacto têm na qualidade de vida?
Sabe-se hoje em dia que a enxaqueca tem um enorme impacto na qualidade de vida. As mulheres com enxaqueca, e sobretudo as que têm crises frequentes e incapacitantes, têm muito pior qualidade de vida, mais depressão, mais ansiedade, maior absentismo laboral, e maior probabilidade de não poder cumprir as suas obrigações sociais e familiares, do que as pessoas sem crises.
A qualidade de vida não é só afetada pela intensidade da dor ou pelo número de crises. Um dos aspetos mais perturbadores da enxaqueca é a sua imprevisibilidade, que torna muito difícil planear a vida do dia a dia. Uma pessoa com enxaqueca nunca sabe se vai estar suficientemente bem para cumprir as suas obrigações, por exemplo ir a uma reunião na escola dos filhos, a um compromisso social ou profissional, ou disponível para fazer uma viagem. Tanto pode estar bem, como pode estar em crise, totalmente incapacitada, fechada num quarto com uma dor intensa, sem poder ver luz nem ouvir ruído ou a vomitar. Esta perda de controlo da vida diária é um dos fatores mais importantes para a perda da qualidade de vida.
Existe uma relação estreita entre a enxaqueca e os fatores hormonais?
Existe uma relação estreita entre a enxaqueca e os fatores hormonais. As crises de enxaqueca ocorrem sobretudo quando ocorrem flutuações dos níveis de estrogénios e progesterona, as hormonas femininas, e talvez seja esse o emotivo para a maior prevalência da enxaqueca nas mulheres.
A probabilidade de uma mulher sofrer uma crise de enxaqueca aumenta na fase pré-menstrual, altura em que os níveis de estrogénios baixam bruscamente. Esta associação com a menstruação verifica-se tanto nas mulheres que têm ciclos espontâneos, como nas mulheres que tomam contracetivos orais e cujos ciclos são induzidos artificialmente.
Durante a gravidez, pelo contrário, é habitual haver uma melhoria ou desaparecimento completo da enxaqueca, o que se deve aos níveis estáveis e elevados de estrogénios produzidos pela placenta.
Na altura da menopausa, por outro lado, os níveis hormonais começam a baixar mas podem ser um pouco erráticos, por isso algumas mulheres notam um agravamento das crises de enxaqueca nessa altura tendendo depois a melhorar quando a menopausa se instala.
É interessante notar que nos dois extremos da vida, na infância e após a menopausa, a frequência da enxaqueca é idêntica nas mulheres e nos homens, enquanto que durante o período fértil é muito mais frequente nas mulheres.
Como identificar? Que exames são necessários para diferenciar a enxaqueca de outras possíveis patologias?
O diagnóstico da enxaqueca é essencialmente clínico, feito pelo médico na base dos sintomas dos doentes. Não existe nenhum marcador biológico para a enxaqueca, ou seja não existem análises laboratoriais, exames de imagem (Tac ou Ressonância) ou exames Neurofisiológicos (como o eletroencefalograma) que permitam diagnosticar a enxaqueca. Esses exames servem sobretudo para excluir a presença de outras doenças.
As crises de enxaqueca caracterizam-se por episódios, que duram entre 4-72 horas, de dor de cabeça muito intensa, pulsátil ou latejante, que se localiza sobretudo na região orbitária e na têmpora mas podem atingir metade ou toda a cabeça. A dor piora com qualquer movimento da cabeça e com o esforço, mesmo pequenos esforços como subir as escadas ou andar um pouco mais depressa. A pessoa fica com uma grande sensibilidade a todos os estímulos sensoriais, luz, som, cheiros e ao movimento, e por isso tendem a isolar-se num local escuro. Durante as a pessoa fica nauseada e pode vomitar. O que significa que a medicação tomada pela via oral pode ser mal absorvida. Cerca de 15% das pessoas têm perturbações visuais a que chamamos a aura.
Quando procurar ajuda médica?
Uma pessoa que tenha crises de enxaqueca incapacitantes, muito frequentes, com aura, ou outros sintomas, ou que não respondem à medicação, deve consultar o seu médico. Por um lado porque deve ter um diagnóstico e, por outro, porque tem havido um desenvolvimento muito grande na terapêutica desta doença, pelo que não faz sentido que as pessoas sofram. Mesmo numa altura de pandemia, como esta que atravessamos, é fundamental que as pessoas não descuidem este aspeto da sua saúde que tem um enorme impacto sobre a produtividade, a qualidade vida e o bem-estar.
Há solução? Que tratamentos?
Existem, hoje em dia, tratamentos inovadores que podem reduzir o número, a intensidade e a duração das crises. As pessoas que sofrem de crises de enxaqueca deve manter um calendário onde assinalam os dias em que tiveram dor de cabeça e os medicamentos que tomaram. Esse registo dá uma noção precisa da frequência, do consumo total de fármacos e se existe alguma periodicidade. Isso que permite ao médico fazer uma terapêutica dirigida a essas alturas mais críticas.
Em termos de medicação podemos dizer que há fármacos para o tratamento agudo de crise com comprovada eficácia, e aguarda-se a qualquer momento a comercialização de mais dois tipos novos de medicamentos. Para as pessoas que têm crises muito frequentes ou incapacitantes, pode estar recomendada medicação preventiva, para evitar que a crise ocorra. Existem medicamentos dados por via oral bem estudados e, mais recentemente, surgiram no mercado medicamentos injetáveis. Um deles é a toxina botulínica, também usada em aplicações estéticas, que é particularmente eficaz nas mulheres que sofrem de enxaqueca cronica; e há um novo grupo de fármacos que são uma espécie de uma vacina, ou seja anticorpos contra uma substância que se liberta nas crises e que são muito bem tolerados.
Por Isabel Pavão Martins
Neurologista no Hospital CUF Infante Santo e responsável pela Consulta de Cefaleias Hospital de Sta Maria
Professora Associada de Neurologia na Faculdade de Medicina e Instituto de Medicina Molecular, Universidade de Lisboa