E quando o jogo passa a ser um vício?
Existe uma linha ténue entre o jogo recreativo e o jogo patológico, mais conhecido como vício em jogo.
O jogo, nas suas múltiplas formas, pode ser uma atividade de lazer emocionante e uma maneira de socializar, desafiar a mente e até ganhar dinheiro.
Contudo, existe uma linha ténue entre o jogo recreativo e o jogo patológico, mais conhecido como vício em jogo.
Mas, afinal, quando é que o jogo passa a ser um vício? Para responder a esta pergunta, é necessário compreender os sinais, as causas e as consequências do comportamento aditivo relacionado com o jogo.
O que é o vício em jogo?
O vício em jogo é uma perturbação psicológica que se caracteriza pela incapacidade de controlar a vontade de jogar, mesmo quando o ato de jogar causa prejuízos significativos à vida do indivíduo, seja no âmbito pessoal, profissional ou social.
É reconhecido como um transtorno do comportamento pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pode ser tão devastador, no que respeita às suas consequências, quanto outros vícios, como o alcoolismo ou a toxicodependência.
Fatores que contribuem para o vício
O desenvolvimento de um vício em jogo pode ser influenciado por uma combinação de fatores:
– Genéticos e biológicos: Algumas pessoas podem ter uma maior predisposição genética para o vício devido a variações em determinados neurotransmissores, como a dopamina, que está associada ao prazer e à recompensa.
– Contextuais (ambiente social e familiar): Crescer num contexto ambiental no qual a prática reiterada de jogo é comum ou aceite pode aumentar o risco de desenvolver comportamentos de jogo problemáticos. Para além disso, o stress, os problemas financeiros ou emocionais podem levar ao jogo como uma forma de fuga ou alívio.
– Psicológicos: Pessoas com baixa autoestima, propensas à depressão ou à ansiedade, podem recorrer ao jogo como uma forma de se sentirem melhor ou de compensar sentimentos negativos.
– Acessibilidade e estímulo: A facilidade de acesso a jogos de azar, especialmente através da internet e das aplicações móveis, aumenta as oportunidades de jogar de forma compulsiva. As estratégias de marketing, que frequentemente incluem bónus e recompensas instantâneas, podem incentivar o comportamento aditivo.
Sinais de que o jogo se tornou num vício
Nem todos os jogadores se tornam viciados, é certo, mas existem sinais claros de que o jogo deixou de ser apenas uma atividade recreativa e passou a ser uma dependência:
– Preocupação excessiva: Pensar constantemente em jogar, planear a próxima aposta ou lembrar-se recorrentemente das experiências passadas de jogo.
– Aumento das apostas: Necessidade de apostar quantias cada vez maiores para obter o mesmo nível de excitação.
– Tentativas fracassadas de parar: Várias tentativas malsucedidas de reduzir ou parar de jogar.
– Mentiras em torno do jogo e esconder a atividade: Mentir para amigos e familiares sobre o tempo ou o dinheiro gasto a jogar.
– Jogar para fugir dos problemas: Usar o jogo como uma forma de escapar de problemas pessoais, financeiros ou emocionais.
– Perda de controlo e impacto negativo: Continuar a jogar apesar dos prejuízos significativos, como dívidas, perda de emprego, problemas familiares, entre outros.
Consequências do vício do jogo
O vício em jogo pode ter consequências devastadoras, do ponto de vista psicológico, emocional e social, que se repercutem nas diversas áreas de vida.
– Impacto emocional e psicológico
- Ansiedade e depressão: O vício do jogo pode levar a altos níveis de stresse, ansiedade e depressão, na medida em que a pessoa experiencia sentimentos de culpa, vergonha e frustração, exatamente por não conseguir controlar o seu comportamento.
- Baixa autoestima: Jogadores compulsivos costumam sentir-se fracassados, pela incapacidade de controlar os seus impulsos, o que leva à deterioração da autoestima. Este fator promove a manutenção do ciclo vicioso, já que a pessoa muitas vezes identifica no jogo uma forma de alívio temporário desses sentimentos.
- Comportamento obsessivo: O jogo torna-se efetivamente uma obsessão, na medida em que é gasto grande parte de seu tempo a ruminar em como obter dinheiro para jogar ou no planeamento de futuras apostas.
– Consequências cognitivas
- Distorções de pensamento: Os jogadores patológicos desenvolvem tipicamente distorções cognitivas, como acreditar que podem “prever” ou “controlar” os resultados dos jogos.
- Tomada de decisões prejudicada: O vício altera a capacidade de raciocínio lógico e de avaliação dos riscos, levando a decisões impulsivas e irracionais. Neste sentido, a procura pelo ganho imediato prejudica o pensamento estratégico ou a consideração das consequências a longo prazo.
– Problemas relacionais e sociais
- Isolamento social: Como o foco principal da vida se torna o jogo, o jogador tende a isolar-se de amigos, familiares e outras atividades sociais, o que pode levar a um sentimento profundo de solidão e, em consequência, exacerbar a dependência do jogo como forma de alívio.
- Problemas familiares: O vício do jogo tende a causar tensão nos relacionamentos familiares devido ao impacto financeiro e emocional. Conflitos conjugais, divórcios e conflitos com filhos são comuns.
- Problemas financeiros e perda de emprego: A compulsão pelo jogo pode levar ao endividamento financeiro, com o acumular de dívidas significativas. Em consequência, a perda de recursos financeiros afeta a qualidade de vida e pode resultar na perda de poupanças, bens e até em falência.
– Comportamentos autodestrutivos
- Aumento de risco de suicídio: O vício do jogo promove no jogador uma taxa de suicídio consideravelmente mais alta do que a população em geral. Deste modo, o sentimento de desespero e a incapacidade de sair do ciclo de endividamento e compulsão podem levar, em casos extremos, a pensamentos e tentativas de suicídio.
- Autossabotagem e comportamentos de risco: Jogadores patológicos podem recorrer a comportamentos de risco para sustentar o vício, como mentir, roubar ou cometer crimes.
Tratamento e prevenção
Reconhecer que o jogo se tornou um problema é o primeiro passo crucial, pelo que procurar ajuda especializada reflete a sua primeira ação certeira. O tratamento pode incluir Terapia Comportamental, Terapia Cognitivo-Comportamental, grupos de apoio (como os Jogadores Anónimos) e, em alguns casos, tratamento farmacológico, nomeadamente para tratar condições associadas, como a depressão ou a ansiedade patológica.
A prevenção, por seu turno, é igualmente essencial e pode passar por promover um ambiente familiar saudável, educar sobre os riscos do jogo, estabelecer limites claros e procurar ajuda ao primeiro sinal de comportamento problemático.
Conclusão
O jogo passa a ser um vício quando o comportamento se torna incontrolável, causa prejuízos significativos e a pessoa não consegue parar, mesmo querendo. É fundamental estar atento aos sinais e procurar ajuda o mais cedo possível para evitar as graves consequências associadas ao vício.
O vício em jogos é uma perturbação psicológica complexa, que exige atenção multidisciplinar, combinando psicoterapia, suporte social e, em alguns casos, intervenção psiquiátrica, de modo a lidar com as comorbidades associadas. Deste modo, a recuperação pode ser um processo longo, no entanto, com o apoio adequado, é possível retomar o controlo sobre as suas vidas.
Lembre-se: jogar deve ser uma atividade divertida e controlada, e nunca uma fuga ou uma obsessão que domina a vida de alguém.
Por Cláudia Venâncio e Vera de Melo
Psicólogas