Cabo Delgado: Civis mortos por grupo armado, forças governamentais e empresa militar privada
Novo relatório da Amnistia Internacional, ‘O que Vi foi a Morte: Crimes de guerra no “Cabo Esquecido” de Moçambique’, dá conta de centenas de pessoas mortas, encurraladas entre ataques do grupo terrorista ‘Al-Shabaab’, das forças governamentais e do Dyck Advisory Group. Mais de meio milhão de civis foram deslocados até à data, num conflito que continua a escalar nesta província do norte de Moçambique.
Centenas de civis foram mortos em Moçambique pelo grupo armado conhecido localmente como ‘Al-Shabaab’, pelas forças de segurança governamentais e por uma empresa militar privada contratada pelo governo, indica um novo relatório da Amnistia Internacional sobre o conflito que continua a devastar Cabo Delgado.
O relatório ‘O que Vi foi a Morte: Crimes de guerra no “Cabo Esquecido” de Moçambique’ documenta graves violações do direito internacional humanitário por todas as partes, resultando em morte e destruição generalizadas e uma crise humanitária que obrigou mais de meio milhão de pessoas a fugir. Este relatório pormenoriza os atos de violência contra civis cometidos pelo ‘Al-Shabaab’, execuções extrajudiciais e outras violações de direitos humanos por forças de segurança do governo e ataques indiscriminados pelo Dyck Advisory Group, uma empresa militar privada sul-africana.
«Os residentes de Cabo Delgado estão encurralados entre as forças de segurança moçambicanas, as milícias privadas que estão a lutar ao lado do governo e o grupo de oposição armada conhecido localmente como ‘Al-Shabaab’ – e nenhum dos três beligerantes respeita o direito dos civis à vida nem as regras da guerra», comenta Deprose Muchena, diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral.
«As três partes cometeram crimes de guerra, causando a morte de centenas de civis. A comunidade internacional não tem conseguido dar resposta a esta crise, que atingiu as proporções de um conflito armado de grande magnitude nos últimos três anos. Apelamos a todas as partes do conflito para que parem imediatamente de atacar civis e ao governo de Moçambique para que investigue urgentemente os crimes de guerra que expusemos», adianta.
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O relatório, baseado em entrevistas com 79 deslocados internos de 15 comunidades, concentra-se principalmente no impacto da intensificação da luta armada em Cabo Delgado desde um grande ataque do ‘Al-Shabaab’ a Mocímboa da Praia, em março de 2020.
A Amnistia Internacional analisou também imagens de satélite, fotografias e dados médicos e de balística. O Crisis Evidence Lab (grupo de análise urgente de provas) da organização concluiu uma investigação em código aberto a material disponível nas redes sociais e a Amnistia Internacional entrevistou ainda analistas de organizações internacionais, jornalistas, trabalhadores humanitários e observadores de direitos humanos locais.
Atrocidades do ‘Al-Shabaab’
Em vários ataques documentados pela Amnistia Internacional, os combatentes do ‘Al-Shabaab’ (sem ligações ao Al-Shabaab da Somália) mataram deliberadamente civis, incendiaram vilas e aldeias e cometeram atos de violência bárbaros com machetes, nomeadamente inúmeras decapitações e profanação de cadáveres.
Em finais de março de 2020, a vila de Quissanga foi atacada pelo ‘Al-Shabaab’. A Amnistia Internacional falou com 16 ex-residentes que testemunharam os combates e as execuções sumárias, espancamentos, raptos, incêndios e pilhagens que ocorreram nas semanas seguintes. Durante o ataque, foram raptados vários adolescentes. Um homem fez esta descrição à Amnistia Internacional: «Levam tanto rapazes como raparigas… Alguns levam-nos para os decapitar. Alguns obrigam as raparigas a tornarem-se ‘esposas’ e a fazer trabalho na base. Os rapazes tornam-se soldados.»
Muitas jovens e raparigas deslocadas afirmaram que fugiram precisamente devido à ameaça de rapto, detenção, violação e casamento forçado com combatentes do ‘Al-Shabaab’. Uma mulher entrevistada pela Amnistia Internacional estava grávida de sete meses quando foi baleada num ataque a um autocarro na aldeia de Nguida, em 23 de julho de 2020. Os combatentes mandaram sair todos os passageiros do autocarro para serem executados. Ela foi abandonada para se esvair em sangue e morrer, mas sobreviveu e deu à luz dois meses mais tarde. O seu marido foi morto no ataque.
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Violência das forças governamentais
As forças governamentais têm também levado a cabo ataques perversos contra civis, que acusam de apoiar ou colaborar com o ‘Al-Shabaab’, denuncia a Amnistia. Os militares e agentes da polícia cometeram execuções extrajudiciais e atos de tortura e outros maus-tratos e mutilaram corpos. Três dias após o ataque inicial a Quissanga, forças de segurança do governo capturaram civis que acreditavam serem apoiantes do ‘Al-Shabaab’. Vendaram os olhos de vários homens e executaram-nos a tiro, atirando depois os seus corpos para uma vala comum, relata a organização de defesa dos direitos humanos.
Durante o mês seguinte, forças de segurança governamentais levaram mulheres para serem violadas na base que tinham montado nas proximidades, onde também detiveram, espancaram e executaram sumariamente outros homens. Uma mulher contou à Amnistia Internacional: «As pessoas desapareciam. Eram todas levadas para o buraco para serem mortas. Eles vêm com uma lista de nomes e perguntam se os conhecemos. E nós não mentimos, para não nos levarem a nós também.»
O Crisis Evidence Lab da Amnistia Internacional analisou e verificou a autenticidade de um vídeo partilhado nas redes sociais que mostrava a execução extrajudicial de uma mulher nua quando ela tentava fugir de Awasse. A mulher não identificada foi interceptada por homens que pareciam pertencer às Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM). Depois de a espancarem com um pau, balearam-na e abandonaram o seu corpo nu em plena estrada. Quatro atiradores diferentes dispararam contra ela no total 36 vezes com diversas espingardas Kalashnikov e uma metralhadora do tipo PKM.
A Amnistia Internacional apresentou anteriormente provas de tentativas de decapitação, tortura e outros maus-tratos de prisioneiros; o desmembramento de alegados combatentes do ‘Al-Shabaab’; possíveis execuções extrajudiciais; e o transporte e descarte de um grande número de cadáveres em aparentes valas comuns. As forças do governo moçambicano não estiveram também à altura do seu dever de proteger os civis dos ataques, assassinatos, raptos e outros abusos cometidos pelo ‘Al-Shabaab’.
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Dyck Advisory Group
Após várias derrotas das forças de segurança contra o ‘Al-Shabaab’, o governo contratou o Dyck Advisory Group (DAG), uma empresa militar privada sul-africana para combater nas suas fileiras utilizando helicópteros armados. Segundo as 53 testemunhas que falaram com a Amnistia Internacional, os operacionais da DAG dispararam metralhadoras dos helicópteros, lançaram granadas de mão indiscriminadamente contra multidões e dispararam também repetidamente contra infraestruturas civis, incluindo hospitais, escolas e habitações.
Uma mulher, que testemunhou combates em Mocímboa da Praia, em finais de junho de 2020, relatou: «Vieram dois helicópteros, um a disparar e a atirar bombas. Um grupo [de civis] que estavam a correr puseram as mãos no ar e não foram atacados. Mas outro grupo de pessoas, que estavam com os bandidos, não puseram as mãos no ar e foram atingidas. Nós vimos isto. Morreram ali muitas pessoas».
Durante um ataque à vila de Mocímboa, em junho de 2020, helicópteros da DAG destruíram um hospital ao visarem combatentes do ‘Al-Shabaab’ que estavam escondidos no edifício. Uma mulher, barricada em sua casa, situada perto do hospital, durante seis dias, disse «…os helicópteros dispararam contra tudo e todos. Eles já não conseguiam dizer quem era quem. A maioria dos terroristas estavam no hospital, pensando que os helicópteros não poderiam atacar. Mas os operacionais de um helicóptero aperceberam-se disto e decidiram bombardear o hospital e foi assim que o hospital ficou completamente destruído.»
«Os testemunhos que recolhemos revelam um padrão consistente de ataques irresponsáveis pelo Dyck Advisory Group», afirmou Deprose Muchena. «A empresa violou claramente o direito internacional humanitário ao disparar indiscriminadamente contra multidões, atacar infraestruturas civis e não distinguir alvos militares e civis. É preciso agora responsabilizá-los pelos seus atos.»
Conflito de Cabo Delgado
Cabo Delgado sofre as consequências do esquecimento e subinvestimento há várias décadas, um problema que foi exacerbado por catástrofes naturais e pela propagação da Covid-19 em toda a região. A área é rica em gás natural, rubis, grafite e madeira, o que leva empresas internacionais a competir pelo acesso à região. Os combates intensificaram-se desde que o ‘Al-Shabaab’ atacou a vila portuária de Mocímboa da Praia, no norte do país, em outubro de 2017.
O projeto de recolha de Dados sobre a Localização e Eventos de Conflitos Armados (ACLED) estima que mais de 1 300 civis foram mortos durante o conflito. As Nações Unidas estimam que mais de 530 000 pessoas, o equivalente a um quarto de toda a população de Cabo Delgado, estão deslocadas na província. Segundo a UNICEF, cerca de 250 000 dos deslocados são crianças.